segunda-feira, 7 de março de 2011

A consciência pode conhecer tudo?

A consciência pode conhecer tudo?
Consciência e conhecimento
O inconsciente
    Freud escreveu que, no transcorrer da modernidade, os humanos foram feridos
três vezes e que as feridas atingiram o nosso narcisismoiii, isto é, a bela imagem
que possuíamos de nós mesmos como seres conscientes racionais e com a qual,
durante séculos, estivemos encantados. Que feridas foram essas?
    A primeira foi a que nos infligiu Copérnico, ao provar que a Terra não estava no
centro do Universo e que os homens não eram o centro do mundo. A segunda foi
causada por Darwin, ao provar que os homens descendem de um primata, que
são apenas um elo na evolução das espécies e não seres especiais, criados por
Deus para dominar a Natureza. A terceira foi causada por Freud com a
psicanálise, ao mostrar que a consciência é a menor parte e a mais fraca de nossa
vida psíquica.
     Na obra Cinco ensaios sobre a psicanálise, Freud escreve:
   “A Psicanálise propõe mostrar que o Eu não somente não é senhor na sua
própria casa, mas também está reduzido a contentar-se com informações
raras e fragmentadas daquilo que se passa fora da consciência, no restante
da vida psíquica… A divisão do psíquico num psíquico consciente e num
psíquico inconsciente constitui a premissa fundamental da psicanálise,
sem a qual ela seria incapaz de compreender os processos patológicos, tão
freqüentes quanto graves, da vida psíquica e fazê-los entrar no quadro da
ciência… A psicanálise se recusa a considerar a consciência como
constituindo a essência da vida psíquica, mas nela vê apenas uma
qualidade desta, podendo coexistir com outras qualidades e até mesmo
faltar.”
A psicanálise
    Freud era médico psiquiatra. Seguindo os médicos de sua época, usava a hipnose
e a sugestão no tratamento dos doentes mentais, mas sentia-se insatisfeito com os
resultados obtidos.
    Certa vez, recebeu uma paciente, Anna O., que apresentava sintomas de histeria,
isto é, apresentava distúrbios físicos (paralisias, enxaquecas, dores de estômago),
sem que houvesse causas físicas para eles, pois eram manifestações corporais de
problemas psíquicos. Em lugar de usar a hipnose e a sugestão, Freud usou um
procedimento novo: fazia com que Anna relaxasse num divã e falasse. Dizia a ela
palavras soltas e pedia-lhe que dissesse a primeira palavra que lhe viesse à
cabeça ao ouvir a que ele dissera (posteriormente, Freud denominaria esse
procedimento de “técnica de associação livre”).
    Freud percebeu que, em certos momentos, Anna reagia a certas palavras e não
pronunciava aquela que lhe viera à cabeça, censurando-a por algum motivo
ignorado por ela e por ele. Notou também que, em outras ocasiões, depois de
fazer a associação livre de palavras, Anna ficava muito agitada e falava muito.
    Observou que, certas vezes, algumas palavras a faziam chorar sem motivo
aparente e, outras vezes, a faziam lembrar de fatos da infância, narrar um sonho
que tivera na noite anterior.
    Pela conversa, pelas reações da paciente, pelos sonhos narrados e pelas
lembranças infantis, Freud descobriu que a vida consciente de Anna era
determinada por uma vida inconsciente, que, tanto ela quanto ele, desconheciam.
   Compreendeu também que somente interpretando as palavras, os sonhos, as
lembranças e os gestos de Anna chegaria a essa vida inconsciente.
Freud descobriu, finalmente, que os sintomas histéricos tinham três finalidades:
1. contar indiretamente aos outros e a si mesma os sentimentos inconscientes; 2.
punir-se por ter tais sentimentos; 3. realizar, pela doença e pelo sofrimento, um
desejo inconsciente intolerável.
   Tratando de outros pacientes, Freud descobriu que, embora, conscientemente,
quisessem a cura, algo neles criava uma barreira, uma resistência inconsciente à
cura. Por quê? Porque os pacientes sentiam-se interiormente ameaçados por
alguma coisa dolorosa e temida, algo que haviam penosamente esquecido e que
não suportavam lembrar. Freud descobriu, assim, que o esquecimento consciente
operava simultaneamente de duas maneiras: 1. como resistência à terapia; 2. sob
a forma da doença psíquica, pois o inconsciente não esquece e obriga o esquecido
a reaparecer sob a forma dos sintomas da neurose e da psicose.
   Desenvolvendo com outros pacientes e consigo mesmo esses procedimentos e
novas técnicas de interpretação de sintomas, sonhos, lembranças, esquecimentos,
Freud foi criando o que chamou de análise da vida psíquica ou psicanálise, cujo
objeto central era o estudo do inconsciente e cuja finalidade era a cura de
neuroses e psicoses, tendo como método a interpretação e como instrumento a
linguagem (tanto a linguagem verbal das palavras quanto a linguagem corporal
dos sintomas e dos gestos).
A vida psíquica
    Durante toda sua vida, Freud não cessou de reformular a teoria psicanalítica,
abandonando alguns conceitos, criando outros, abandonando algumas técnicas
terapêuticas e criando outras. Não vamos, aqui, acompanhar a história da
formação da psicanálise, mas apresentar algumas de suas principais idéias e
inovações.
    A vida psíquica é constituída por três instâncias, duas delas inconscientes e
apenas uma consciente: o id, o superego e o ego (ou o isso, o supereu e o eu).
Os dois primeiros são inconscientes; o terceiro, consciente.
    O id é formado por instintos, impulsos orgânicos e desejos inconscientes, ou seja,
pelo que Freud designa como pulsões. Estas são regidas pelo princípio do
prazer, que exige satisfação imediata. O id é a energia dos instintos e dos
desejos em busca da realização desse princípio do prazer. É a libido. Instintos,
impulsos e desejos, em suma, as pulsões, são de natureza sexual e a sexualidade
não se reduz ao ato sexual genital, mas a todos os desejos que pedem e
encontram satisfação na totalidade de nosso corpo.
     Freud descobriu três fases da sexualidade humana que se diferenciam pelos
órgãos que sentem prazer e pelos objetos ou seres que dão prazer. Essas fases se
desenvolvem entre os primeiros meses de vida e os cinco ou seis anos, ligadas ao
desenvolvimento do id: a fase oral , quando o desejo e o prazer localizam-se
primordialmente na boca e na ingestão de alimentos e o seio materno, a
mamadeira, a chupeta, os dedos são objetos do prazer; a fase anal , quando o
desejo e o prazer localizam-se primordialmente no ânus e as excreções, fezes,
brincar com massas e com tintas, amassar barro ou argila, comer coisas cremosas
e sujar-se são os objetos do prazer; e a fase genital ou fase fálica, quando o
desejo e o prazer localizam-se primordialmente nos órgãos genitais e nas partes
do corpo que excitam tais órgãos. Nessa fase, para os meninos, a mãe é o objeto
do desejo e do prazer; para as meninas, o pai.
    No centro do id, determinando toda a vida psíquica, encontra-se o que Freud
denominou de complexo de Édipo, isto é, o desejo incestuoso pelo pai ou pela
mãe. É esse o desejo fundamental que organiza a totalidade da vida psíquica e
determina o sentido de nossas vidas.
    O superego, também inconsciente, é a censura das pulsões que a sociedade e a
cultura impõem ao id, impedindo-o de satisfazer plenamente seus instintos e
desejos. É a repressão, particularmente a repressão sexual. Manifesta-se à
consciência indiretamente, sob a forma da moral, como um conjunto de
interdições e de deveres, e por meio da educação, pela produção da imagem do
“eu ideal”, isto é, da pessoa moral, boa e virtuosa. O superego ou censura
desenvolve-se num período que Freud designa como período de latência,
situado entre os seis ou sete anos e o início da puberdade ou adolescência. Nesse
período, forma-se nossa personalidade moral e social, de maneira que, quando a
sexualidade genital ressurgir, estará obrigada a seguir o caminho traçado pelo
superego.
    O ego ou o eu é a consciência, pequena parte da vida psíquica submetida aos
desejos do id e à repressão do superego. Obedece ao princípio da realidade, ou
seja, à necessidade de encontrar objetos que possam satisfazer ao id sem
transgredir as exigências do superego.
    O ego, diz Freud, é “um pobre coitado”, espremido entre três escravidões: os
desejos insaciáveis do id, a severidade repressiva do superego e os perigos do
mundo exterior. Por esse motivo, a forma fundamental da existência para o ego é
a angústia. Se se submeter ao id, torna-se imoral e destrutivo; se se submeter ao
superego, enlouquece de desespero, pois viverá numa insatisfação insuportável;
se não se submeter à realidade do mundo, será destruído por ele. Cabe ao ego
encontrar caminhos para a angústia existencial. Estamos divididos entre o
princípio do prazer (que não conhece limites) e o princípio da realidade (que nos
impõe limites externos e internos).
     Ao ego-eu, ou seja, à consciência, é dada uma função dupla: ao mesmo tempo
recalcar o id, satisfazendo o superego, e satisfazer o id, limitando o poderio do
superego. A vida consciente normal é o equilíbrio encontrado pela consciência
para realizar sua dupla função. A loucura (neuroses e psicoses) é a incapacidade
do ego para realizar sua dupla função, seja porque o id ou o superego são
excessivamente fortes, seja porque o ego é excessivamente fraco.
     O inconsciente, em suas duas formas, está impedido de manifestar-se diretamente
à consciência, mas consegue fazê-lo indiretamente. A maneira mais eficaz para a
manifestação é a substituição, isto é, o inconsciente oferece à consciência um
substituto aceitáve l por ela e por meio do qual ela pode satisfazer o id ou o
superego. Os substitutos são imagens (isto é, representações analógicas dos
objetos do desejo) e formam o imaginário psíquico, que, ao ocultar e dissimular o
verdadeiro desejo, o satisfaz indiretamente por meio de objetos substitutos (a
chupeta e o dedo, para o seio materno; tintas e pintura ou argila e escultura para
as fezes, uma pessoa amada no lugar do pai ou da mãe). Além dos substitutos
reais (chupeta, argila, pessoa amada), o imaginário inconsciente também oferece
outros substitutos, os mais freqüentes sendo os sonhos, os lapsos e os atos falhos.
    Neles, realizamos desejos inconscientes, de natureza sexual. São a satisfação
imaginária do desejo.
    Alguém sonha, por exemplo, que sobe uma escada, está num naufrágio ou num
incêndio. Na realidade, sonhou com uma relação sexual proibida. Alguém quer
dizer uma palavra, esquece-a ou se engana, comete um lapso e diz uma outra que
nos surpreende, pois nada tem a ver com aquela que se queria dizer. Realizou um
desejo proibido. Alguém vai andando por uma rua e, sem querer, torce o pé e
quebra o objeto que estava carregando. Realizou um desejo proibido.
    A vida psíquica dá sentido e coloração afetivo -sexual a todos os objetos e todas
as pessoas que nos rodeiam e entre os quais vivemos. Por isso, sem que saibamos
por que, desejamos e amamos certas coisas e pessoas, odiamos e tememos outras.
    As coisas e os outros são investidos por nosso inconsciente com cargas afetivas
de libido.
    É por esse motivo que certas coisas, certos sons, certas cores, certos animais,
certas situações nos enchem de pavor, enquanto outras nos enchem de bem-estar,
sem que o possamos explicar. A origem das simpatias e antipatias, amores e
ódios, medos e prazeres está em nossa mais tenra infância, em geral nos
primeiros meses e anos de nossa vida, quando se formam as relações afetivas
fundamentais e o complexo de Édipo.
    Essa dimensão imaginária de nossa vida psíquica – substituições, sonhos, lapsos,
atos falhos, prazer e desprazer com objetos e pessoas – indica que os recursos
inconscientes para surgir indiretamente à consciência possuem dois níveis: o
nível do conteúdo manifesto (escada, mar e incêndio, no sonho; a palavra
esquecida e a pronunciada, no lapso; pé torcido ou objeto partido, no ato falho;
afetos contrários por coisas e pessoas) e o nível do conteúdo latente, que é o
conteúdo inconsciente real e oculto (os desejos sexuais).
    Nossa vida normal se passa no plano dos conteúdos manifestos e, portanto, no
imaginário. Somente uma análise psíquica e psicológica desses conteúdos, por
meio de técnicas especiais (trazidas pela psicanálise), nos permite decifrar o
conteúdo latente que se dissimula sob o conteúdo manifesto.
    Além dos recursos individuais cotidianos que nosso inconsciente usa para
manifestar-se, e além dos recursos extremos e dolorosos usados na loucura (nela,
os recursos são os sintomas), existe um outro recurso, de enorme importância
para a vida cultural e social, isto é, para a existência coletiva. Trata-se do que
Freud designa com o nome de sublimação.
     Na sublimação, os desejos inconscientes são transformados em uma outra coisa,
exprimem-se pela criação de uma outra coisa: as obras de arte, as ciências, a
religião, a Filosofia, as técnicas, as instituições sociais e as ações políticas.
    Artistas, místicos, pensadores, escritores, cientistas, líderes políticos satisfazem
seus desejos pela sublimação e, portanto, pela realização de obras e pela criação
de instituições religiosas, sociais, políticas, etc.
     Porém, assim como a loucura é a impossibilidade do ego para realizar sua própria
função, também a sublimação pode não ser alcançada e, em seu lugar, surgir uma
perversão social ou coletiva, uma loucura social ou coletiva. O nazismo é um
exemplo de perversão, em vez de sublimação. A propaganda, que induz em nós
falsos desejos sexuais pela multiplicação das imagens de prazer, é um outro
exemplo de perversão ou de incapacidade para a sublimação.
     O inconsciente, diz Freud, não é o subconsciente. Este é aquele grau de
consciência como consciência passiva e consciência vivida não-reflexiva,
podendo tornar-se plenamente consciente. O inconsciente, ao contrário, jamais
será consciente diretamente, podendo ser captado apenas indiretamente e por
meio de técnicas especiais de interpretação desenvolvidas pela psicanálise.
    A psicanálise descobriu, assim, uma poderosa limitação às pretensões da
consciência para dominar e controlar a realidade e o conhecimento.
     Paradoxalmente, porém, nos revelou a capacidade fantástica da razão e do
pensamento para ousar atravessar proibições e repressões e buscar a verdade,
mesmo que para isso seja preciso desmontar a bela imagem que os seres
humanos têm de si mesmos.
     Longe de desvalorizar a teoria do conhecimento, a psicanálise exige do
pensamento que não faça concessões às idéias estabelecidas, à moral vigente, aos
preconceitos e às opiniões de nossa sociedade, mas que as enfrente em nome da
própria razão e do pensamento. A consciência é frágil, mas é ela que decide e
aceita correr o risco da angústia e o risco de desvendar e decifrar o inconsciente.
    Aceita e decide enfrentar a angústia para chegar ao conhecimento: somos um
caniço pensante.

Liberdade
    Necessidade, fatalidade, determinismo significam que não há lugar para a
liberdade, porque o curso das coisas e de nossas vidas já está fixado, sem que
nele possamos intervir. Contingência e acaso significam que não há lugar para a
liberdade, porque não há curso algum das coisas e de nossas vidas sobre o qual
pudéssemos intervir.
    Tomemos um exemplo da necessidade oposta à liberdade:
Não escolhi nascer numa determinada época, num determinado país, numa
determinada família, com um corpo determinado. As condições de meu
nascimento e de minha vida fazem de mim aquilo que sou e minhas ações, meus
desejos, meus sentimentos, minhas intenções, minhas condutas resultam dessas
condições, nada restando a mim senão obedecê-las. Como dizer que sou livre e
responsável?
    Se, por exemplo, nasci negra, mulher, numa família pobre, numa sociedade
racista, machista e classista, que me discrimina racial, sexual e socialmente, que
me impede o acesso à escola e a um trabalho bem remunerado, que me proíbe a
entrada em certos lugares, que me interdita amar quem não for da mesma “raça”
e classe social, como dizer que sou livre para viver, sentir, pensar e agir de uma
maneira que não escolhi, mas foi-me imposta?
    Tomemos, agora, um exemplo da contingência oposta à liberdade.
    Quando minha mãe estava grávida de mim, houve um acidente sanitário,
provocando uma epidemia. Minha mãe adoeceu. Nasci com problemas de visão.
Foi por acaso que a gravidez de minha mãe coincidiu com o acaso da epidemia:
por acaso, ela adoeceu; por acaso, nasci com distúrbios visuais. Tendo tais
distúrbios, preciso de cuidados médicos especiais. No entanto, na época em que
nasci, o governo de meu país instituiu um plano econômico de redução de
empregos e privatização do serviço público de saúde. Meu pai e minha mãe
ficaram desempregados e não podiam contar com o serviço de saúde para meu
tratamento. Tivesse eu nascido em outra ocasião, talvez pudesse ter sido curada
de meus problemas visuais.
    Quis o acaso que eu nascesse numa época funesta. Tal como sou, há coisas que
não posso fazer. Sou, porém, bem dotada para música e poderia receber uma
educação musical. Porém, houve a decisão do governo municipal de minha
cidade de demolir o conservatório musical público. Não posso pagar um
conservatório particular e ficarei sem a educação musical, porque, por acaso,
moro numa cidade que deixará de ter um serviço público de educação artística.
Morasse eu em outra cidade ou fosse outro o governo municipal, isso não
aconteceria comigo. Como, então, dizer que sou livre para decidir e escolher, se
vivo num mundo onde tudo acontece por acaso?
     Diante da necessidade e da contingência, como afirmar que “mais vasto é meu
coração”? – ou que a felicidade “está sempre onde a pomos”? Examinemos mais
de perto os dois exemplos mencionados.
     No primeiro exemplo – negra, mulher, pobre, numa sociedade racista, machista,
classista – parece que nada posso fazer. A porta está fechada e a luz apagada.
     Porém, nada estará no poder de minha liberdade? Terei que gostar do escuro e
permanecer com a porta fechada? Se a ética afirmar que a discriminação étnica,
sexual e de classe é imoral (isto é, violenta), se eu tiver consciência disso, nada
farei? Serei impotente para lutar livremente contra tal situação? Mantendo-me
resignada, conformada, passiva e omissa não estarei fazendo da necessidade uma
desculpa, um álibi para não agir?
      No segundo exemplo – epidemia, desemprego, fim dos serviços públicos de
saúde e educação artística – também parece que nada posso fazer. Será verdade?
Não estarei transformando os acasos de meu nascimento e das condições
políticas em desculpa e álibi para minha resignação? Falarei em “destino” e “má
sorte” para explicar o fechamento de todos os possíveis para fim? Renunciarei à
vastidão do meu coração, aceitando que a felicidade sempre será posta onde não
estou?
     Nos dois casos, podemos indagar se, afinal, para nós resta somente “a pena de
viver, mais nada” ou se, como escreveu o filósofo Sartre, o que importa não é
saber o que fizeram de nós e sim o que fazemos com o que quiseram fazer
conosco.
Três grandes concepções filosóficas da liberdade
     Na história das idéias ocidentais, necessidade e contingência foram representadas
por figuras míticas. A primeira, pelas três Parcas ou Moiras, representando a
fatalidade, isto é, o destino inelutável de cada um de nós, do nascimento à morte.
Uma das Parcas ou Moiras era representada fiando o fio de nossa vida, enquanto
a outra o tecia e a última o cortava, simbolizando nossa morte. A contingência
(ou o acaso) era representada pela Fortuna, mulher volúvel e caprichosa, que
trazia nas mãos uma roda, fazendo-a girar de tal modo que quem estivesse no alto
(a boa fortuna ou boa sorte) caísse (infortúnio ou má sorte) e quem estivesse
embaixo fosse elevado. Inconstante, incerta e cega, a roda da Fortuna era a pura
sorte, boa ou má, contra a qual nada se poderia fazer, como na música de Chico
Buarque: “Eis que chega a roda-viva, levando a saudade pra lá”.
As teorias éticas procuraram sempre enfrentar o duplo problema da necessidade e
da contingência, definindo o campo da liberdade possível.

     A primeira grande teoria filosófica da liberdade é exposta por Aristóteles em sua
obra Ética a Nicômaco e, com variantes, permanece através dos séculos,
chegando até o século XX, quando foi retomada por Sartre. Nessa concepção, a
liberdade se opõe ao que é condicionado externamente (necessidade) e ao que
acontece sem escolha deliberada (contingência).
      Diz Aristóteles que é livre aquele que tem em si mesmo o princípio para agir ou
não agir, isto é, aquele que é causa interna de sua ação ou da decisão de não agir.
A liberdade é concebida como o poder pleno e incondicional da vontade para
determinar a si mesma ou para ser autodeterminada. É pensada, também, como
ausência de constrangimentos externos e internos, isto é, como uma capacidade
que não encontra obstáculos para se realizar, nem é forçada por coisa alguma
para agir. Trata-se da espontaneidade plena do agente, que dá a si mesmo os
motivos e os fins de sua ação, sem ser constrangido ou forçado por nada e por
ninguém.
     Assim, na concepção aristotélica, a liberdade é o princípio para escolher entre
alternativas possíveis, realizando-se como decisão e ato voluntário.
     Contrariamente ao necessário ou à necessidade, sob a qual o agente sofre a ação
de uma causa externa que o obriga a agir sempre de uma determinada maneira,
no ato voluntário livre o agente é causa de si, isto é, causa integral de sua ação.
Sem dúvida, poder-se-ia dizer que a vontade livre é determinada pela razão ou
pela inteligência e, nesse caso, seria preciso admitir que não é causa de si ou
incondicionada, mas que é causada pelo raciocínio ou pelo pensamento.
      No entanto, como disseram os filósofos posteriores a Aristóteles, a inteligência
inclina a vontade numa certa direção, mas não a obriga nem a constrange, tanto
assim que podemos agir na direção contrária à indicada pela inteligência ou
razão. É por ser livre e incondicionada que a vontade pode seguir ou não os
conselhos da consciência. A liberdade será ética quando o exercício da vontade
estiver em harmonia com a direção apontada pela razão.
     Sartre levou essa concepção ao ponto limite. Para ele, a liberdade é a escolha
incondicional que o próprio homem faz de seu ser e de seu mundo. Quando
julgamos estar sob o poder de forças externas mais poderosas do que nossa
vontade, esse julgamento é uma decisão livre, pois outros homens, nas mesmas
circunstâncias, não se curvaram nem se resignaram.
     Em outras palavras, conformar-se ou resignar-se é uma decisão livre, tanto
quanto não se resignar nem se conformar, lutando contra as circunstâncias.
     Quando dizemos estar fatigados, a fadiga é uma decisão nossa. Quando dizemos
estar enfraquecidos, a fraqueza é uma decisão nossa. Quando dizemos não ter o
que fazer, o abandono é uma decisão nossa. Ceder tanto quanto não ceder é uma
decisão nossa.
      Por isso, Sartre afirma que estamos condenados à liberdade. É ela que define a
humanidade dos humanos, sem escapatória. É essa idéia que encontramos no
poema de Carlos Drummond, quando afirma que somos maiores do que o “vasto
mundo”. É ela também que se encontra no poema de Vicente de Carvalho,
quando nos diz que a felicidade “está sempre apenas onde a pomos” e “nunca a
pomos onde nós estamos”. Somos agentes livres tanto para ter quanto para perder
a felicidade.
     A segunda concepção da liberdade foi, inicialmente, desenvolvida por uma
escola de Filosofia do período helenístico, o estoicismo, ressurgindo no século
XVII com o filósofo Espinosa e, no século XIX, com Hegel e Marx. Eles
conservam a idéia aristotélica de que a liberdade é a autodeterminação ou ser
causa de si. Conservam também a idéia de que é livre aquele que age sem ser
forçado nem constrangido por nada ou por ninguém e, portanto, age movido
espontaneamente por uma força interna própria. No entanto, diferentemente de
Aristóteles e de Sartre, não colocam a liberdade no ato de escolha realizado pela
vontade individual, mas na atividade do todo, do qual os indivíduos são partes.
     O todo ou a totalidade pode ser a Natureza – como para os estóicos e Espinosa -,
ou a Cultura – como para Hegel – ou, enfim, uma formação histórico-social –
como para Marx. Em qualquer dos casos, é a totalidade que age ou atua segundo
seus próprios princípios, dando a si mesma suas leis, suas regras, suas normas.
      Essa totalidade é livre em si mesma porque nada a força ou a obriga do exterior,
e por sua liberdade instaura leis e normas necessárias para suas partes (os
indivíduos). Em outras palavras, a liberdade, agora, não é um poder individual
incondicionado para escolher – a Natureza não escolhe, a Cultura não escolhe,
uma formação social não escolhe -, mas é o poder do todo para agir em
conformidade consigo mesmo, sendo necessariamente o que é e fazendo
necessariamente o que faz.
     Como podemos observar, essa concepção não mantém a oposição entre liberdade
e necessidade, mas afirma que a necessidade (as leis da Natureza, as normas e
regras da Cultura, as leis da História) é a maneira pela qual a liberdade do todo se
manifesta. Em outras palavras, a totalidade é livre porque se põe a si mesma na
existência e define por si mesma as leis e as regras de sua atividade; e é
necessária porque tais leis e regras exprimem necessariamente o que ela é e faz.
      Liberdade não é escolher e deliberar, mas agir ou fazer alguma coisa em
conformidade com a natureza do agente que, no caso, é a totalidade. O que é,
então, a liberdade humana?
    São duas as respostas a essa questão:
1. a primeira afirma que o todo é racional e que suas partes também o são, sendo
livres quando agirem em conformidade com as leis do todo, para o bem da
totalidade;
2. a segunda afirma que as partes são de mesma essência que o todo e, portanto,
são racionais e livres como ele, dotadas de força interior para agir por si mesmas,
de sorte que a liberdade é tomar parte ativa na atividade do todo. Tomar parte
ativa significa, por um lado, conhecer as condições estabelecidas pelo todo,
conhecer suas causas e o modo como determinam nossas ações, e, por outro lado,
graças a tal conhecimento, não ser um joguete das condições e causas que atuam
sobre nós, mas agir sobre elas também. Não somos livres para escolher tudo, mas
o somos para fazer tudo quanto esteja de acordo com nosso ser e com nossa
capacidade de agir, graças ao conhecimento que possuímos das circunstâncias em
que vamos agir.
     Além da concepção de tipo aristotélico-sartreano e da concepção de tipo estóicohegeliano,existe ainda uma terceira concepção que procura unir elementos das duas anteriores. Afirma, como a segunda, que não somos um poder incondicional de escolha de quaisquer possíveis, mas que nossas escolhas são condicionadas pelas circunstâncias naturais, psíquicas, culturais e históricas em que vivemos, isto é, pela totalidade natural e histórica em que estamos situados. Afirma, como a primeira, que a liberdade é um ato de decisão e escolha entre vários possíveis.
    Todavia, não se trata da liberdade de querer alguma coisa e sim de fazer alguma
coisa, distinção feita por Espinosa e Hobbes, no século XVII, e retomada, no
século XVIII, por Voltaire, ao dizerem que somos livres para fazer alguma coisa
quando temos o poder para fazê-la.
      Essa terceira concepção da liberdade introduz a noção de possibilidade objetiva. O possível não é apenas alguma coisa sentida ou percebida subjetivamente por nós, mas é também e sobretudo alguma coisa inscrita no coração da necessidade,
indicando que o curso de uma situação pode ser mudado por nós, em certas
direções e sob certas condições. A liberdade é a capacidade para perceber tais
possibilidades e o poder para realizar aquelas ações que mudam o curso das
coisas, dando-lhe outra direção ou outro sentido.
    Na verdade, a não ser aqueles filósofos que afirmaram a liberdade como um
poder absolutamente incondicional da vontade, em quaisquer circunstâncias
(como o fizeram, por razões diferentes, Kant e Sartre), os demais, nas três
concepções apresentadas, sempre levaram em conta a tensão entre nossa
liberdade e as condições – naturais, culturais, psíquicas – que nos determinam.
    As discussões sobre as paixões, os interesses, as circunstâncias histórico-sociais,
as condições naturais sempre estiveram presentes na ética e por isso uma idéia
como a de possibilidade objetiva sempre esteve pressuposta ou implícita nas
teorias sobre a liberdade.
Liberdade e possibilidade objetiva
O possível não é o provável. Este é o previsível, isto é, algo que podemos
calcular e antever, porque é uma probabilidade contida nos fatos e nos dados que
analisamos. O possível, porém, é aquilo criado pela nossa própria ação. É o que
vem à existência graças ao nosso agir. No entanto, não surge como “árvore
milagrosa” e sim como aquilo que as circunstâncias abriram para nossa ação. A
liberdade é a consciência simultânea das circunstâncias existentes e das ações
que, suscitadas por tais circunstâncias, nos permitem ultrapassá-las.
     Nosso mundo, nossa vida e nosso presente formam um campo de condições e
circunstâncias que não foram escolhidas e nem determinadas por nós e em cujo
interior nos movemos. No entanto, esse campo é temporal: teve um passado, tem
um presente e terá um futuro, cujos vetores ou direções já podem ser percebidos
ou mesmo adivinhados como possibilidades objetivas. Diante desse campo,
poderíamos assumir duas atitudes: ou a ilusão de que somos livres para mudá-lo
em qualquer direção que desejarmos, ou a resignação de que nada podemos fazer.
      Deixado a si mesmo, o campo do presente seguirá um curso que não depende de
nós e seremos submetidos passivamente a ele – a torneira permanecerá seca ou
vazará, inundando a casa, a luz permanecerá apagada ou haverá um curtocircuito,
incendiando a casa, a porta permanecerá fechada ou será arrombada,
deixando a casa ser invadida. A liberdade, porém, não se encontra na ilusão do
“posso tudo”, nem no conformismo do “nada posso”. Encontra-se na disposição
para interpretar e decifrar os vetores do campo presente como possibilidades
objetivas, isto é, como abertura de novas direções e novos sentidos a partir do
que está dado.
      .
   É essa mesma concepção da liberdade como possibilidade objetiva inscrita no
mundo que encontramos no filósofo Merleau-Ponty, quando escreve:
   “Nascer é, simultaneamente, nascer do mundo e nascer para o mundo. Sob
o primeiro aspecto, o mundo já está constituído e somos solicitados por
ele. Sob o segundo aspecto, o mundo não está inteiramente constituído e
estamos abertos a uma infinidade de possíveis. Existimos, porém, sob os
dois aspectos ao mesmo tempo. Não há, pois, necessidade absoluta nem
escolha absoluta, jamais sou como uma coisa e jamais sou uma pura
consciência… A situação vem em socorro da decisão e, no intercâmbio
entre a situação e aquele que a assume, é impossível delimitar a “parte que
cabe à situação” e a “parte que cabe à liberdade”.
    Tortura-se um homem para fazê-lo falar. Se ele recusa dar nomes e
endereços que lhe querem arrancar, não é por sua decisão solitária e sem
apoios no mundo. É que ele se sente ainda com seus companheiros e ainda
engajado numa luta comum; ou é porque, desde há meses ou anos, tem
enfrentado essa provocação em pensamento e nela apostara toda sua vida;
ou, enfim, é porque ele quer provar, ultrapassando-a, o que ele sempre
pensou e disse sobre a liberdade.
     Tais motivações não anulam a liberdade, mas lhe dão ancoradouro no ser.
     Ele não é uma consciência nua que resiste à dor, mas o prisioneiro com
seus companheiros, ou com aqueles que ama e sob cujo olhar ele vive, ou,
enfim, a consciência orgulhosamente solitária que é, ainda, um modo de
estar com os outros… Escolhemos nosso mundo e nosso mundo nos
escolhe…
     Concretamente tomada, a liberdade é sempre o encontro de nosso interior
com o exterior, degradando-se, sem nunca tornar-se nula, à medida que
diminui a tolerância dos dados corporais e institucionais de nossa vida. Há
um campo de liberdade e uma “liberdade condicionada”, porque tenho
possibilidades próximas e distantes…
     A escolha de vida que fazemos tem sempre lugar sobre a base de situações
dadas e possibilidades abertas. Minha liberdade pode desviar minha vida
do sentido espontâneo que teria, mas o faz deslizando sobre este sentido,
esposando-o inicialmente para depois afastar-se dele, e não por uma
criação absoluta…
     Sou uma estrutura psicológica e histórica. Recebi uma maneira de existir,
um estilo de existência. Todas as minhas ações e meus pensamentos estão
em relação com essa estrutura. No entanto, sou livre, não apesar disto ou
aquém dessas motivações, mas por meio delas, são elas que me fazem
comunicar com minha vida, com o mundo e com minha liberdade.
     A liberdade é a capacidade para darmos um sentido novo ao que parecia
fatalidade, transformando a situação de fato numa realidade nova, criada por
nossa ação. Essa força transformadora, que torna real o que era somente possível
e que se achava apenas latente como possibilidade, é o que faz surgir uma obra
de arte, uma obra de pensamento, uma ação heróica, um movimento anti-racista,
uma luta contra a discriminação sexual ou de classe social, uma resistência à
tirania e a vitória contra ela.
     O possível não é pura contingência ou acaso. O necessário não é fatalidade bruta.
     O possível é o que se encontra aberto no coração do necessário e que nossa
liberdade agarra para fazer-se liberdade. Nosso desejo e nossa vontade não são
incondicionados, mas os condicionamentos não são obstáculos à liberdade e sim
o meio pelo qual ela pode exercer-se.
     Se nascemos numa sociedade que nos ensina certos valores morais – justiça,
igualdade, veracidade, generosidade, coragem, amizade, direito à felicidade – e,
no entanto, impede a concretização deles porque está organizada e estruturada de
modo a impedi-los, o reconhecimento da contradição entre o ideal e a realidade é
o primeiro momento da liberdade e da vida ética como recusa da violência. O
segundo momento é a busca das brechas pelas quais possa passar o possível, isto
é, uma outra sociedade que concretize no real aquilo que a nossa propõe no ideal.
     Esse segundo momento indaga se um possível existe e se temos o poder para
torná-lo real, isto é, se temos como passar da “pena de viver” e da “árvore
milagrosa” a uma felicidade que, enfim, esteja onde nós estamos. O terceiro
momento é o da nossa decisão de agir e da escolha dos meios para a ação. O
último momento da liberdade é a realização da ação para transformar um possível
num real, uma possibilidade numa realidade.
     Eis por que o poeta José Paulo Paes introduz o “mas o pior” em seu poema. De
fato, a torneira está seca, mas o pior é não ter sede, isto é, não agir para que a
água possa correr pela torneira. De fato, a luz está apagada, mas o pior é gostar
do escuro, isto é, não agir para que a luz possa acender-se. De fato, a porta está
trancada, mas o pior é saber que a chave está do lado de dentro e nada fazer para
girá-la. O mundo já está constituído, escreve Merleau-Ponty – a torneira está
seca, a luz apagada e a porta fechada. Porém, o mundo, prossegue o filósofo, não
está completamente constituído, não está pronto e acabado, mas, como escreve
Carlos Drummond, “o grande mundo está crescendo todo dia” pelo fogo e amor
dos seres humanos e o pior seria renunciar a ele por estarmos nele.
(Professora Marilena Chauí)